Amostra do livro Uma Julieta Para o Italiano

CAPÍTULO 1

Verona — Itália

Greta

— Vamos embora, Greta! Não sei o que você faz parada há tanto tempo em frente à estátua de Giulietta.

— Me sinto em paz quando estou perto dela.

A minha irmã mais nova olhou com atenção o rosto de Giulietta Capuleti eternizado na estátua de bronze que ficava no pátio da Casa di Giulietta[1].

— Nunca entendi por que ainda persiste essa crença de colocarmos a mão no seio direito da estátua para termos sorte no amor. Os dois morreram! — Ela fez uma careta engraçada, desvalorizando a lenda que existia por trás da história de Romeo e Giulietta.

— O amor deles era tão perfeito, puro e eterno que só quem tem sorte no amor consegue um igual. A nossa lenda é linda e deve ser preservada. Pode parecer apenas um toque sem significado em uma estátua de bronze, mas já ouvi relatos de muitas mulheres que foram felizes no amor depois de tocarem no seio direito de Giulietta. Dizem que a pessoa é abençoada com um casamento por toda a vida e que o amor que une o casal é verdadeiro.

Estávamos no início do inverno e não havia ninguém na Casa di Giulietta. Se ainda fosse verão, o pátio estaria lotado de turistas, inclusive com filas para tocar na estátua e ter sorte no amor.

— Já ouvi tudo isso, mas não acredito em nada. Como pode uma coisa dessas? Eles morreram!!! — Giovanna repetiu quase soletrando, como se eu fosse uma idiota por ainda não ter entendido aquilo. — Se morreram, não tiveram sorte. Acho que acreditar nessa crença só traz azar no amor, isso sim!

— Pois eu acredito — afirmei com um sorriso tranquilo, sem desviar o olhar da estátua de Giulietta. — Eles morreram, mas se amaram perdidamente. Viveram um amor raro, especial e eterno. Quantas pessoas morrem sem nunca terem amado verdadeiramente? Sim, é verdade que morreram e que o tempo que os dois passaram juntos foi pouco, mas a intensidade do que sentiram, os momentos inesquecíveis que viveram, a força do amor que os uniu foi tanta, mas tanta, que fez tudo valer a pena. 

Recebi um olhar surpreso de Giovanna, o que eu entendia muito bem. Com dezesseis anos, ela era totalmente desinteressada dos assuntos do coração.

— Nunca pensei que você fosse assim tão romântica, Greta.

— Sou, não nego. Também não sei explicar o que sinto, mas algo em Giulietta me toca profundamente. Sinto-me solidária com o que ela viveu, entende?

— Não, não entendo e estou até arrepiada com essa história de solidariedade com alguém que morreu tragicamente por amor. É melhor irmos embora daqui. — Ela enfiou as mãos nos bolsos do casaco, trocando o peso do corpo de um pé para o outro em uma tentativa de se aquecer.

— Temos que esperar a Mirella e a Allegra chegarem.

— Não precisamos esperar aqui fora nesse frio — reclamou, olhando com desagrado para o pátio deserto.

— Foi aqui fora que marquei com elas. Não devem demorar muito.

O bufado impaciente de Giovanna não tirou o meu prazer de visitar a estátua de Giulietta nem de sentir a energia romântica do lugar. Mesmo que a verdadeira história dos dois amantes apaixonados não tenha acontecido exatamente ali como diziam, eu acreditava na eternidade do amor que Romeo & Giulietta sentiram um pelo outro, fosse qual fosse o lugar onde moraram.

Eu era assumidamente romântica e não deixaria que ninguém tirasse aquilo de mim. Já bastava o fato de ter que lutar quase diariamente para fazer as minhas próprias escolhas.

Ultimamente, vinha sofrendo pressão dos meus pais para aceitar o pedido de noivado de Fausto Podovani, um empresário que passou a ter negócios com a minha família e que havia se tornado o melhor amigo do meu irmão Alessio. O homem tinha trinta e sete anos e possuía até uma boa aparência, mas o meu coração não acelerava uma única batida quando o via.

Eu nunca ia me esquecer do quanto fiquei perplexa e assustada ao saber das intenções dele durante um almoço em família. A péssima notícia foi dada pelo meu pai.

— Como posso ficar noiva de um homem com quem sequer namorei?

— Isso já mostra as intenções sérias dele. Em vez de namoriscar com você, Fausto quer que seja logo sua noiva — o meu pai explicou com satisfação. — Ele é respeitador e sabe que a nossa família é muito tradicional. Agiu da forma correta.

— Sinto-me honrada, mas não quero esse noivado, pai.

Ele apenas sorriu com condescendência, como se eu ainda fosse uma menina sem capacidade para tomar decisões e não uma mulher de vinte e quatro anos.

— Ainda é muito cedo para negar. Vamos dar tempo ao tempo.

— Eu não preciso de tempo para saber que não quero me casar com ele.

— Você nem sequer deu uma chance para o Fausto se aproximar e já está negando! — Alessio me acusou com o costumeiro azedume.

— É muito difícil para você entender que eu não quero ter nenhuma aproximação com ele?

O meu pai já ia intervir, mas a minha avó o interrompeu.

— Não obriguem a minha neta a se casar. — Como sempre, ela ficou do meu lado. — Se esse Fausto está apaixonado, deixe que a conquiste primeiro. Um homem tem que saber conquistar a mulher que deseja como esposa.

O alívio que senti foi enorme. Era graças à minha avó que eu ainda conseguia calar a boca de Alessio.

— Vamos manter a calma. — O meu pai amenizou os ânimos antes que explodisse mais uma das muitas discussões entre o meu irmão e eu. — Vamos dar tempo para Greta se acostumar com a ideia do noivado.

Eu nunca ia me acostumar com aquele noivado sem noção, mas preferi ficar calada em respeito ao estado de saúde do meu pai, que havia tido um princípio de infarto e se submetido a uma angioplastia com stent há duas semanas, estando ainda em recuperação.

No mais íntimo da minha alma, eu sabia que o homem da minha vida era outro e que um dia nós dois íamos nos encontrar para viver o nosso amor. Era por ele que eu esperava e não por Fausto Podovani.

O vento soprou forte na Casa di Giulietta, arrastando as folhas secas espalhadas pelo chão do pátio. Coloquei a mão sobre o seio direito da estátua dela e fechei os olhos, erguendo o rosto para o céu.

Deixei que a magia do lugar me envolvesse e repeti o mesmo pedido que sempre fazia.

Doce Giulietta, dá-me um amor tão forte, profundo e eterno quanto o teu foi por Romeo. Também sou uma Giulietta e peço que traga o meu Romeo para mim.

A ventania ganhou força e sorri, confiante de que teria o meu pedido atendido. Inspirei profundamente, aproveitando o prazer de estar ao ar livre.

— Até que enfim elas chegaram! — A voz aliviada de Giovanna se misturou com o som dos passos rápidos dela afastando-se de mim.

Permaneci onde estava, sem querer voltar para a minha realidade. Em casa, só me aguardava austeridade e uma energia pesada demais para o meu gosto.

— Greta! Vamos embora!

Suspirei de enfado ao ouvir o tom enjoado de Mirella, a esposa do meu irmão mais velho. Quando ela se casou com o Gianfranco, achei que teria uma amiga e aliada dentro de casa, mas aconteceu o contrário. A minha cunhada seguia à risca todas as ordens descabidas dos meus irmãos.

Abri os olhos e encarei a estátua de Giulietta.

— Não vá se esquecer de mim!

Voltei a inspirar o ar fresco do final de tarde e dei meia volta, indo para onde elas estavam. Ignorei o olhar irritado de Mirella e a impaciência de Giovanna e entrelacei o meu braço no de Allegra, minha prima e melhor amiga.

Éramos sete filhos em casa. Eu tinha três irmãos mais velhos e três irmãs mais novas. Sendo a filha do meio, às vezes me sentia fora de lugar, como se não pertencesse nem a um grupo nem ao outro. Entretanto, amava as minhas irmãs, mas suportava os meus irmãos.

A minha prima Allegra era a única filha mulher do meu tio Saverio e se apegou a mim como se eu fosse uma irmã. Tínhamos a mesma idade, os mesmos sonhos e gostos, além de opiniões iguais em muita coisa. Com tantas afinidades, era quase impossível não sermos tão amigas. Apenas no aspecto físico éramos o completo oposto uma da outra. Enquanto eu era alta e tinha os cabelos castanhos, ela era baixinha e loura, o mesmo biotipo da mãe.

— Vamos embora! Já estamos atrasadas. — Mirella não desperdiçou a oportunidade de ser mais chata ainda.

Ela era uma mulher muito bonita e vaidosa, mas o que tinha de beleza tinha também de chatice.

— Sim, claro. Não vamos perder mais tempo aqui — concordei com bom humor, sorrindo ao sentir o aperto cúmplice que Allegra deu no meu braço.

Seguimos pela rua em direção ao local onde o carro estava estacionado. Havíamos acabado de dobrar a esquina que levava à praça central da cidade quando Mirella parou abruptamente à minha frente.

Pega de surpresa, acabei por colidir contra as costas rígidas dela.

Cristo Santo![2] Por que parou desse jeito?

Ela nos agarrou pelo braço e puxou para trás, fazendo-nos recuar. Só quando dobramos novamente a esquina foi que nos soltou.

Ma che succede?[3] — insisti, chocada com a atitude dela.

— É aquele Bergamaschi. Il capo![4] — Mirella explicou com voz urgente e nervosa.

Só então entendi a reação exagerada da minha cunhada. Como sempre, o problema não podia ser outro além dos arqui-inimigos da minha família.

Enchi-me de paciência quando falei com ela.

Sei sicuro?[5] Você vive vendo Bergamaschi em tudo o que é lugar. Tem que parar com isso.

— Eu tenho certeza que é um deles!

— E daí se for? A cidade é de todos os moradores e não só deles. Podemos andar pelas ruas normalmente.

Mirella me olhou mal-humorada.

— Estamos sozinhas, sem nenhum homem da família. Não sabemos o que ele poderá fazer se nos ver.

— Não precisamos “dos homens da família” para andarmos pela cidade. Se for mesmo um Bergamaschi, o que eu duvido muito, o que ele vai fazer contra nós em plena praça pública? Estamos no século XXI e não na era medieval, Mirella! — Tentei mostrar o óbvio para ela, mesmo sabendo que Mirella já havia interiorizado a eterna ladainha dos meus irmãos de que os Bergamaschi representavam um perigo para os Rossetti. — Que medo mais idiota esse seu!

Ela empertigou o corpo magro, visivelmente ofendida.

— Medo idiota?

Aquilo ia dar em merda. Provavelmente os meus irmãos cairiam em cima de mim depois, mas não consegui ficar calada.

— Sim, isso mesmo. Um medo idiota, para não dizer ridículo. Fizemos um papelão agora que não é digno da família Rossetti. — Olhei de cara feia para ela. — Você nos obrigou a sair correndo pelo meio da rua só porque acredita ter visto um Bergamaschi à nossa frente. Um Rossetti não é covarde!

Segurei a Allegra e a Giovanna pelo braço e levei-as de volta à praça.

— Você a enfrentou! — Allegra sussurrou, assustada. — Gianfranco vai ficar furioso.

Dos meus irmãos, eu tinha muito mais receio de Alessio do que de Gianfranco, mas não comentei nada.

— Estou cansada dos desvarios de Mirella. Ela vê inimigos por todo lado e já não tenho mais paciência para isso. Um Rossetti não é covarde — repeti com orgulho da minha família. — Agora vamos para o carro. Ela que fique escondida lá atrás, se quiser.

Caminhei com elas sem pressa alguma, olhando disfarçadamente as pessoas que circulavam pela praça.

Não vi nenhum homem que parecesse ser um dos Bergamaschi. Eu não conhecia todos eles, apenas o avô e um dos filhos, que era antipático até dizer basta. Não fazia a mínima ideia de quem era “il capo”[6] que havia causado aquele surto em Mirella.

Foi justamente ela quem o mostrou para mim assim que nos alcançou e emparelhou comigo.

— Ele está do outro lado da rua, perto do banco. Vamos ficar do lado de cá.

Olhei na direção do banco e observei o homem alto que ela havia indicado. Só consegui ver as costas largas e os cabelos escuros, mas vacilei nos passos quando um calafrio inesperado percorreu o meu corpo logo depois. Tive a sensação de não ser a primeira vez que vivia aquele momento, de já ter vivido uma situação igual àquela antes.

Ao meu lado, Allegra me olhou com estranheza quando tropecei na calçada. Firmei os pés, sem conseguir desgrudar a vista do homem imponente do outro lado da rua. Ele usava um sobretudo preto e comprido que ondulava ao sabor do vento invernal à medida que andava, deixando-me subitamente sem fôlego.

Notei o terno elegante por baixo do sobretudo, os sapatos que pareciam caríssimos e a postura autoconfiante com que abriu a porta do banco e desapareceu lá dentro.

— Como é que você sabe que é um dos Bergamaschi? — Fingi normalidade quando fiz a pergunta à Mirella. — Nem vimos a cara do homem.

— Aquele só pode ser o filho mais velho. Vive mais tempo fora de Verona do que aqui, mas de vez em quando é visto pela cidade.

— Só pode ser ele ou é?

— É!

Sei!

Não acreditei nela. Senti que Mirella falava mais com teimosia do que com a certeza do que dizia. Contudo, se o homem fosse mesmo quem ela dizia, eu não queria era vê-lo nunca mais. Já existiam problemas demais na minha vida para agora perder tempo em analisar a sensação estranha que havia sentido instantes atrás.

— Não me pareceu ser um homem capaz de nos atacar no meio da praça. — Não consegui deixar de alfinetá-la.

— Só queria ver se você diria o mesmo caso estivesse sozinha com ele no meio de uma estrada deserta. — Ela bateu na própria testa, como se tivesse acabado de se lembrar de algo. — Ah, claro! Você não poderia me dizer nada depois. Já estaria morta!

Arrepiei-me novamente, mas daquela vez foi de nojo com a capacidade que Mirella tinha de ser tão agourenta.

Dio mio![7] Que mulher insuportável!

 

[1] Ponto turístico de Verona que fica no centro da cidade e é supostamente a casa onde Julieta viveu.

[2] Pelo amor de Deus!

[3] Mas, o que está acontecendo?

[4] O chefe!

[5] Tem certeza?

[6] O chefe.

[7] Meu Deus!

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