Amostra do livro O Desaparecimento de Mary Anne

CAPÍTULO 1

MATO GROSSO

Polícia Judiciária Civil

Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa — DHPP

Douglas

Uma pasta foi jogada em cima da minha mesa faltando apenas trinta minutos para encerrar o meu expediente da sexta-feira. Ergui os olhos do celular, no qual tinha acabado de escolher um pacote para minha viagem de férias ao Chile e os fixei no homem truculento parado à minha frente com os braços cruzados no peito.

— Seu próximo caso, Nogueira. É urgente.

Lancei um olhar frio para a pasta antes de encarar meu detestável colega de trabalho. Apesar de termos o mesmo cargo de investigador dentro da polícia civil, ele atuava como meu superior quando trabalhávamos juntos em um caso, não só por ter mais tempo de carreira como também pela influência que tinha com o delegado. Só que Tavares usava métodos de investigação com os quais eu não concordava e que se tornaram motivo de discussões entre nós dois. Hoje em dia, mesmo ele sendo mais velho do que eu e mais antigo na polícia, nada me impedia de responder à altura quando a situação exigia. E foi exatamente isso o que fiz naquele momento.

— Minhas férias começam na segunda, hoje é sexta, não estou de plantão no fim de semana nem de sobreaviso. Isso significa que este caso vai ficar parado, esperando que eu volte, a menos que seja entregue para outro investigador.

— Estamos com falta de pessoal e você sabe que não temos outro investigador para pegar os seus casos.

— Ainda nem toquei na pasta, portanto, este não é um dos meus casos.

— Foi o chefe que o designou para você e não sou eu que vou devolver a pasta para ele. Faça isso você mesmo!

Droga!

Bati a palma da mão aberta com força sobre a pasta, chamando a atenção de Marcela, que trabalhava duas mesas à frente. Ela lançou um olhar curioso em nossa direção e depois o desviou de volta para o computador. Controlando a vontade de socar o Tavares, que continuava à minha frente com um sorrisinho filho da mãe na cara, levantei-me e peguei a pasta, caminhando com determinação para a sala do delegado.

A cada dia que passava, o meu relacionamento com Tavares piorava. Com quarenta e cinco anos, e mais de vinte na polícia civil, ele era um idiota arrogante. Quando um caso era mais complexo do que sua capacidade de percepção, ele o arquivava logo por falta de provas, em vez de ir mais a fundo na investigação. Tavares era o recordista de casos arquivados do departamento, mas o delegado não fazia nada. Eu não entendia como ele continuava passando na avaliação de desempenho. Só podia ser porque tínhamos tão pouco pessoal, a ponto de até um mau policial ser melhor do que nada.

Como de costume, encontrei a porta do delegado entreaberta. Dei duas batidas nela para anunciar minha chegada e entrei.

— Chefe.

— Nogueira! Estava pensando em você agora mesmo — ele disse, assim que me viu entrar. — Já ia chamar você para conversarmos sobre o seu novo caso.

Trinquei os dentes antes que acabasse dizendo agressivamente que o caso ainda não era meu. O problema era aquele “ainda”.

— Estou saindo de férias e só poderei ver o caso quando voltar, chefe. Se for mesmo urgente, talvez seja melhor passar para outro investigador.

De preferência, para o experiente Tavares!

— Era justamente isso que eu precisava conversar com você, Nogueira. Infelizmente, terá de adiar suas férias por mais algumas semanas.

— Já venho adiando. Como desta vez tenho viagem marcada, não dá para cancelar agora. — Tentei manter o tom de voz inalterado, sem demonstrar a irritação que sentia. — Na verdade, não quero cancelar, chefe. Estou esgotado e precisando dessas férias.

Ele me olhou com firmeza, mas identifiquei também uma ponta de compreensão na sua expressão. Apesar disso, percebi que ele não ia ceder.

— Estamos todos esgotados, Nogueira. Você, eu e o departamento inteiro. — Apontou para a cadeira em frente à mesa. — Feche a porta e se sente.

Eu não queria fechar a porta e me sentar, porque já adivinhava o que viria a seguir. A única coisa que eu queria era ir embora dali e me isolar do mundo. Não foi à toa que marquei minhas férias na Patagônia chilena. Precisava me afastar de tudo ou acabaria enlouquecendo. Os últimos casos que peguei tinham sido exaustivos e mediáticos demais para o meu gosto.

Contudo, o que realmente acabou comigo nos últimos meses foi a ausência de Karina. Eu ainda não havia superado o fato de ela me abandonar. Já havia passado três meses, mas parecia uma vida inteira. Na ocasião em que ela me deixou, mergulhei de cabeça no trabalho, porém, agora, eu estava à beira de um esgotamento.

Contra a minha vontade, fechei a porta e me sentei, aguardando o discurso que ele faria para me convencer de que deveria me sacrificar mais uma vez em nome do departamento, da lei e do país.

— Você é o meu melhor investigador, e que isso não saia dessa sala, para não criar problemas para você e para mim — o chefe disse, com rara sabedoria. — Sei que estamos sobrecarregados e tento sempre ser justo com todos.

— Só que todos já tiraram férias este ano, ao contrário de mim, que estou com férias acumuladas — lembrei-lhe, colocando a pasta sobre a mesa dele.

O delegado Meireles olhou para a pasta e depois para mim com a testa franzida. Aquela era a minha resposta à sua quase ordem para que aceitasse sem reclamar o adiamento das férias, e estava óbvio que ele não havia gostado.

— Estamos sob a vigilância acirrada do Ministério Público, que está nos nossos calcanhares por causa dos prazos. Qualquer dia desses, ainda conseguem que esta unidade seja desativada, sob a alegação de que o custo para a manter aberta é alto, diante dos poucos casos que resolvemos, e vão nos realocar em outras. Aquela Bernadete, da ONG de desaparecidos Procure-me!, vive enchendo o meu saco. Fiz a distribuição mais justa possível entre os investigadores que tenho disponíveis no momento. Você até que teve sorte. — Apontou para a pasta sobre a mesa. — Dos que lhe passei, apenas este está fora do prazo para envio do primeiro parecer ao Ministério Público, mas já pedi um prazo maior para concluirmos a investigação. Se você não quiser ser realocado em outra unidade, aconselho que adie suas férias pelo menos até me entregar um relatório sobre ele. Quanto aos demais, poderá resolver quando retornar.

Apertei os punhos com força e engoli a vontade de praguejar alto dentro da sala. Eu sabia do problema de falta de pessoal, mas tinha chegado a um limite perigoso de estresse e precisava me afastar. Quando comecei a trabalhar no departamento há sete anos, não esperava que parte dos policiais se aposentasse  nos anos seguintes, nem que houvesse tantas baixas por doença, a ponto de a sobrecarga de trabalho ser tão grande. A promessa de concurso público para contratação de novos policiais não passou disso, uma promessa, e a situação estava ficando insustentável.

Para disfarçar a frustração, peguei a pasta de volta e a abri, analisando o conteúdo. Era um caso de desaparecimento de uma bebê de seis meses, chamada Mary Anne Mendonça de Carvalho, ocorrido há dois meses em Monte Branco. Quase nada tinha sido feito da investigação.

Mas que droga! Vou ter de começar do zero.

— Ela está desaparecida esse tempo todo e só agora viram que é urgente?

Passei as páginas do inquérito, pensando no desespero de uma mãe que precisava aguardar um período tão longo para que o desaparecimento da filha fosse realmente investigado pela polícia. Depois de todo aquele tempo, seria uma sorte danada se eu conseguisse encontrar alguma pista da menina e resolver o caso. Ela até já poderia estar fora do país, com a fronteira da Bolívia tão próxima.

O delegado Meireles não pareceu irritado com o meu sarcasmo, sendo até diplomático.

— O caso estava com o Pereira. Como você sabe, ele entrou de licença médica a perder de vista — bufou, irritado com as constantes baixas no número de investigadores ativos. — Desde então, o caso ficou parado. Você sabe que o desaparecimento de uma menor é sempre motivo para o Ministério Público e as ONG´s de desaparecidos caírem em cima de nós por causa da demora. Como estamos todos sobrecarregados, tente fazer o melhor que conseguir sozinho, porque o Tavares vai pegar outros casos. Faça as investigações que precisar. Quanto mais rápido resolver este, mais rápido entrará de férias.

A única coisa boa daquilo tudo era não ter de trabalhar em parceria com o Tavares. Levantei-me, conformado com aquela situação, mas também determinado a não perder mais tempo. Precisava encontrar alguma pista que pudesse me ajudar a fechar o caso e sair de férias. Voltei à minha mesa e liguei novamente o computador, começando a analisar os arquivos do sistema e os documentos que estavam na pasta.

Quem registrou a queixa do desaparecimento na delegacia foi a mãe, que alegou estar sozinha na ocasião. Aconteceu em um domingo de manhã, quando levou a filha para passear no parque. Como era próximo de casa, ela foi a pé, empurrando o carrinho de bebê. Segundo disse, havia muita gente no local, inclusive famílias inteiras com crianças. A certa altura, resolveu se deitar na grama para descansar da noite que havia passado acordada cuidando da filha, e adormeceu. Quando despertou e decidiu voltar para casa, a bebê não estava mais no carrinho.

Ao ser questionada acerca de possíveis suspeitos, citou uma estranha que viu nas redondezas dias antes. Não tinha provas, disse apenas que seu instinto materno suspeitou da mulher. Aquela era a única pista.

Olhei fixamente para o nome da suspeita, sentindo o coração acelerar no peito com a coincidência.

Karina.

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