Amostra do livro A Única Esposa do Sheik
CAPÍTULO 1
Cairo, Egito
Kismet, a predestinada
— Adib está em casa? — Tahira perguntou apressadamente do outro lado da linha. — Já tentei ligar várias vezes e ele não me atende.
Adib devia estar em alguma festa com os amigos da faculdade. Mesmo que ele visse as ligações, eu tinha certeza de que não ia atender enquanto a diversão não acabasse.
Mas não seria eu quem ia dizer aquilo para Tahira, então fui evasiva.
— Ele não está em casa.
— Assim que o seu irmão chegar diga que ligue imediatamente para o seu pai.
Tahira era a segunda esposa do meu pai, mas ela assumiu a posição de primeira esposa com a morte da minha mãe, que faleceu durante o parto do quinto filho. Eu tinha sete anos quando minha mãe não resistiu às complicações do nascimento do meu irmão mais novo e partiu de vez. Ela já havia perdido outros filhos antes e a insistência na gravidez foi demais para ela. Morreu jovem, aos vinte e nove anos. Deixou cinco filhos, sendo quatro homens e apenas eu de mulher.
Cresci sendo cuidada por Tahira, mas nunca consegui ter um relacionamento bom com ela. Apesar de ter se transformado na primeira esposa do meu pai — uma posição de destaque diante das outras três esposas dele —, o coração do poderoso Sheik Abdullah Al Kabeer parecia ter sido enterrado junto com a sua amada Ranya, para desgosto de Tahira. Mesmo tendo um total de dezenove filhos de todas as suas quatro esposas, o meu pai tinha uma predileção especial por mim e por meus irmãos. Kassim era o mais velho e hoje tinha vinte e sete anos, sendo o braço direito do meu pai. Depois vinha Ahmed com vinte e seis, que atualmente estudava no Reino Unido. O filho do meio era Adib, com vinte e cinco anos, que estava comigo no Cairo e era o meu insuportável guardião. Eu tinha vinte e Nahim era o mais novo com treze anos.
Eu sabia que Tahira se ressentia da preferência do meu pai pelos filhos da falecida primeira esposa, apesar de disfarçar muito bem na presença dele. Mesmo se esforçando muito para ser uma boa mãe para mim, ela nunca havia sido amorosa comigo.
— Está tudo bem aí em casa? — perguntei, preocupada que tivesse acontecido algo com o meu pai.
— Malika foi detida hoje na fronteira com Qasara[1] e não sabemos o que mais vai acontecer a partir de agora.
Que Allah[2] misericordioso a proteja!
Malika era a filha mais querida de Tahira e a única das minhas meias-irmãs com quem eu me dava bem. Na verdade, eu podia considerar que Malika era uma verdadeira irmã de coração. Saber do que aconteceu com ela fez o medo me paralisar e fiquei momentaneamente sem conseguir emitir uma única palavra, sentindo-me sufocada de angústia.
— Prenderam a Malika? — Quase gritei aquela pergunta quando consegui falar de novo.
— Fale baixo, Kismet! Os empregados podem ouvir. A palavra é prata, o silêncio é ouro!
Apesar da reprimenda, ela começou a me contar em voz sussurrada os detalhes da prisão de Malika, como se tivesse receio que alguém a ouvisse. Aquele era um cuidado meio desnecessário, uma vez que sabíamos que a própria ligação podia estar sendo rastreada. Se aquilo realmente estivesse acontecendo, significaria sérios problemas para a família inteira. Inclusive para mim, mesmo morando longe de Sadiz há seis meses.
— E o meu pai? — perguntei, temendo ouvir que também ele estava preso.
— Abdullah foi ao escritório do seu tio Fahir, mas não tenho muita esperança de que consiga alguma ajuda dele. Estamos todos da família na mesma situação.
Ela tinha razão e fechei os olhos quando a tristeza se abateu sobre mim, junto com uma inexplicável sensação de fatalidade. Algo me dizia que aquilo era só o começo de algo bem pior que estava destinado à minha família em Sadiz[3], e, consequentemente, a mim também!
— Eu avisei à Malika que era arriscado permanecer aí. Ela devia ter vindo comigo para o Cairo.
Lembrei-me a tempo de que a ligação podia estar sendo grampeada e não comentei nada sobre todas as vezes em que falei para Malika que ela poderia continuar lutando pelos direitos das mulheres árabes em qualquer lugar do mundo. Mas ela não me ouviu, insistindo em ser ativista bem debaixo das barbas do governante de Sadiz, que, para desgosto de todos da família, era também o meu odiado tio Suleiman Al Kabeer.
— Ele enlouqueceu!
Não precisei citar o nome do meu tio para ela saber que eu falava dele e ouvi o gemido desesperado que Tahira não conseguiu conter.
— Você sabe o que isso significa, não é? — ela me alertou e eu já sabia o que viria pela frente. — O seu pai e eu não poderemos mais impedir o seu casamento.
Um calafrio aterrorizante percorreu o meu corpo só de ouvir falar do meu casamento com o príncipe herdeiro[4] de Tamrah[5], o país vizinho de Sadiz, rico em petróleo e gás natural, cujo governante devia ser mais déspota do que o meu próprio tio para estar fazendo alianças com ele. A meu ver, o único ponto positivo de Tamrah, era que lá as mulheres tinham mais liberdade e direitos do que no meu país, podendo até dirigirem os carros. Fora isso, todo o resto era igualzinho.
Eu não queria me casar aos vinte anos com um príncipe herdeiro devasso e decadente, conhecido por promover constantes orgias em um dos seus palácios, por consumir drogas e por maltratar funcionários. Mesmo com a família real de Tamrah fazendo de tudo para abafar os escândalos envolvendo o futuro governante, muita coisa ainda vazava para fora das fronteiras do país. Eu nunca tinha visto Majdan Al Harbi pessoalmente, mas sabia que tinha trinta e nove anos e que era o melhor amigo do meu primo Mubarak, o filho predileto do meu tio Suleiman, que eu odiava ainda mais do que a ele.
Mais experiente do que eu, Malika havia me contado que Majdan e Mubarak se tornaram inseparáveis quando foram estudar na Real Academia Militar de Sandhurst[6] no Reino Unido. O que eu não entendia, era como dois alunos de uma instituição respeitada como aquela podiam ser homens tão desprezíveis. Apesar de eu nunca ter visto o príncipe herdeiro de Tamrah, por tudo o que Malika havia me contado em segredo sobre ele, o que eu mais queria era fugir para bem longe só de ouvir falar o nome de Majdan Al Harbi.
— Quando ele era mais jovem, saiu nos noticiários por dar uma festa na casa de campo da família em Londres, onde teve muita bebida e outras coisas.
Franzi a testa, sem entender.
— Que outras coisas?
Ela pareceu indecisa se me contava ou não, mas depois se inclinou sobre o meu ouvido e cochichou.
— Drogas, sexo, álcool.
Fiquei tão assustada que me afastei dela, arregalando os olhos e cobrindo a boca com a mão.
— Allah me proteja!
— Disseram até que ele forçou sexo com duas mulheres, que o denunciaram — ela continuou a sussurrar. — Mas a família desmentiu tudo e nada foi provado. Majdan foi e continua sendo um dos príncipes herdeiros mais cobiçados, até pelas ocidentais.
Eu sabia que muitas mulheres me invejariam se soubessem dos arranjos secretos que estavam sendo feitos para aquele casamento, mas além de todas as coisas horríveis que Malika me contou, havia também o fato de que eu seria a segunda esposa dele, algo que me enojava. Apesar de ser permitido que um homem tivesse até quatro esposas, eu me revoltava com a ideia de não ser a única esposa do meu marido. E, pior ainda, não poder escolher com quem me casaria.
— Você sabe que podia ter tido o azar de escolherem um noivo de setenta e dois anos para ser seu marido, como aconteceu com a minha irmã Aysla — Malika tinha comentado comigo quando conversamos sobre a proposta de casamento que o meu tio Suleiman havia trazido para o meu pai. — Pelo menos este príncipe herdeiro é jovem e bonito.
Na ocasião, neguei veementemente, sentindo-me assustada com aquela possibilidade. Eu queria ser livre para terminar os meus estudos, algo que um marido árabe jamais deixaria que acontecesse. Só de imaginar o meu casamento com um desconhecido, por quem eu não estava apaixonada e que me teria como sua segunda esposa, sentia ânsias de vômito.
— Eu nasci no lugar errado, Malika. Não consigo aceitar essas regras absurdas que nos obrigam a casar com homens desconhecidos que nunca vamos amar e que serão nossos donos para o resto da vida. Me desespera a ideia de não me casar por amor e de não ser a única esposa do meu marido. Desprezo homens que mantêm haréns, amantes, fazem orgias sexuais e vivem na devassidão — desabafei, revoltada. — Amo a minha família, mas se me forçarem a casar com ele, prefiro fugir daqui.
Olhando com preocupação para mim, Malika colocou um dedo sobre os meus lábios para que me calasse.
— Não repita nada disso fora deste quarto. Ninguém pode ouvir ou saber do que você pensa — ela me alertou com o rosto muito sério. — Você sabe qual é a punição.
Sim, eu sabia, por isso me calei à força, mas não contive as lágrimas.
— Não quero me casar! Quero me formar em Gestão e ser livre. Por que escolheram justamente a mim?
— Tio Suleiman tem muito interesse em estreitar relações entre os dois países através desse casamento e o nosso pai é o irmão mais influente da família, além de ser admirado e respeitado no mundo árabe. Você é a única filha do primeiro casamento dele com a princesa de Qasara. Óbvio que seria você a escolhida de Suleiman — ela explicou com paciência.
— Somos oito filhas aqui em casa e cinco ainda estão sem compromisso algum. Fora isso, temos tantas outras primas da mesma linhagem que poderiam se casar com ele. Nossa família é grande e há muitas mulheres em idade de casamento. Não me conformo em ser a escolhida!
Malika soltou um suspiro de tristeza e frustração.
— Quando tio Suleiman pensou em uma esposa para Majdan, Mubarak falou imediatamente de você. Parece que ele já tinha comentado a seu respeito com o príncipe herdeiro, que ficou interessado no casamento ao saber de sua rara beleza.
Contraí a boca com desgosto ao saber que Mubarak foi o responsável pela minha desgraça.
— Prefiro ter o meu rosto desfigurado a ser a segunda esposa de um sheik depravado que é quase vinte anos mais velho do que eu.
— Poderia ser trinta, quarenta, até cinquenta anos a mais.
— Oh, bismillah![7]
Ela me olhou com compreensão. Com vinte e quatro anos, Malika estava prometida a um dos nossos primos mais queridos, por quem era apaixonada desde criança e com quem se casaria muito feliz.
— Vou falar com Bassam e tentar convencê-lo a conversar com nosso pai para você ir estudar Gestão na Universidade Americana do Cairo. Como Adib já está estudando lá, ele ficará sendo o seu guardião enquanto estiverem fora de Sadiz.
Ficar sob a guarda de Adib não era bem o que eu queria, mas não havia outra maneira de me autorizarem a sair do país. Ele era insuportavelmente arrogante na sua condição de filho predileto do meu pai, ainda mais em uma cultura onde as mulheres não tinham vez para nada.
Infelizmente, eu teria de suportar os desmandos de Adib ou desistir dos meus sonhos.
— Será que o pai vai permitir?
Malika me pareceu confiante.
— Você sabe que nosso pai não gosta do tio Suleiman e está do lado da família que vem tentando tirá-lo do governo. Para sua sorte, ele não está interessado no seu casamento com Majdan Al Harbi. Tenho certeza de que vão concordar em tirar você de Sadiz.
Olhei-a, agradecida. Se havia alguém que podia convencer o meu pai era o meu meio-irmão Bassam, conhecido pela sua diplomacia ao lidar com os assuntos das mulheres da família. Na verdade, ele era o único que tinha mais consideração por nós, principalmente por Malika.
— Você não quer vir comigo? Dabir ainda está terminando o curso dele em Paris e vocês só vão se casar quando ele estiver formado — lembrei-a.
— Eu não quero sair do país agora. Estou envolvida em um projeto com nossa prima Fhatima.
Arregalei os olhos, surpresa. Fhatima era uma das princesas da família, filha do sétimo irmão do meu pai e uma opositora ferrenha do reinado do meu tio Suleiman.
— Isso não é perigoso, Malika? Fhatima está na mira do governo.
— Não se preocupe. Ela é respeitada internacionalmente. Até mesmo nossos vizinhos reconhecem o trabalho que faz em favor da educação e dos direitos das mulheres árabes. Não acredito que o nosso tio chegue a fazer nada contra ela.
Infelizmente, Malika estava enganada. Meses atrás, Fhatima havia sido impedida de sair do país quando estava embarcando em seu jato particular para uma viagem à Nova York. Soldados do governo prenderam-na e até hoje ninguém da família sabia para onde foi levada. Corriam-se rumores de que estava isolada em uma prisão de segurança máxima onde outros membros da família real também se encontravam presos, acusados de conspirarem contra o reinado de Sua Alteza Real Suleiman Al Kabeer.
Eu já estava estudando no Cairo na ocasião e fiquei assustadíssima com a capacidade do meu tio Suleiman de mandar prender os próprios familiares, só por serem contra os desmandos do governo dele. Segundo foi noticiado pelo canal de televisão estatal, os presos políticos da família estavam armando um golpe de Estado para destituir o rei do governo, por isso foram detidos.
Quando Malika me ligou para contar o que havia acontecido, notei o quanto estava revoltada. Ela disse que estava entrando em contato com vários órgãos internacionais de direitos humanos para exigirem a libertação de Fhatima. Só que agora era Malika quem estava necessitando de ajuda para ficar livre e eu não sabia o que fazer.
— Acha que meu pai vai conseguir convencer tio Suleiman a soltar Malika? — perguntei à Tahira.
Não consegui disfarçar a dor que sentia na alma com a situação da minha irmã e notei a hesitação de Tahira antes de me responder.
— Acho que ele vai chantagear com o seu casamento.
O meu pior pesadelo estava se concretizando.
— Isso não, por favor! — implorei, sentindo as lágrimas caindo pelo rosto.
— Eu sinto muito. — Ela usou um tom de voz tão frio que estava óbvio que não sentia nada e percebi que Tahira não hesitaria em me entregar de bandeja para Majdan Al Kabeer. — Se antes Suleiman já tinha muito poder sobre nós, agora, com a prisão de Malika e dos outros membros da família, tem muito mais. Nem quero imaginar o que a minha filha deve estar passando naquele presídio horrendo para onde a levaram.
O mal-estar que senti foi tanto que vi o quarto girar ao meu redor. Precisei respirar fundo várias vezes até conseguir controlar a vertigem que me dominou.
— O que será de nós? — perguntei em um sussurro engasgado, aterrorizada demais com aquela situação que os meus vinte anos não me prepararam para viver.
— Allah é mais poderoso, Kismet. Nunca se esqueça disso. Ele há de nos ajudar.
— Insha’Allah! [8]
[1] País fictício criado para o livro.
[2] Allah ou Alá é Deus no Islã.
[3] País fictício da família da personagem Kismet.
[4] Em uma monarquia árabe, todos os filhos homens recebem o título de príncipe, mas aquele que é escolhido como sucessor, recebe um título adicional que o distinguirá dos demais príncipes, isto de acordo com cada monarquia. No contexto árabe, o título de Príncipe Herdeiro é dado àquele que, dentre todos os outros príncipes, será o sucessor que assumirá após a morte do monarca.
[5] País fictício da família do personagem Saqr.
[6] A Real Academia Militar de Sandhurst fica no Reino Unido é conhecida pelos seus alunos famosos, como o Príncipe William, Duque de Cambridge e o Príncipe Harry, ambos da família real britânica. Recebe também muitos alunos de outras famílias reais da Europa e dos países árabes.
[7] Significa “Em nome de Allah”, “Em nome de Deus”, mas também é usado no sentido de “Deus me ajude”.
[8] Insha’Allah/Inshallah. Deus queira; se Deus quiser.