Amostra da Série Linhas do Destino

PRÓLOGO

“O fim de algo pode ser o começo de tudo.”

Porto, Portugal

Angélica

Apressei os passos para chegar o mais rápido possível no colégio e fugir do frio, puxando o capuz para proteger o rosto.

— Vamos lá, Angélica! Já está perto — sussurrei para mim mesma, contando mentalmente cada passo que dava para chegar ao colégio.

Através das grades altas dos muros que circundavam o prédio, vi os alunos atravessando o portão de entrada e andei mais rápido.

Quando virei a esquina, senti o meu celular vibrar no bolso.

— Oh, não, por favor! Não com este frio.

Por nada no mundo eu queria tirar as minhas mãos dos bolsos quentinhos, mas o celular tinha opinião própria e ignorou o meu apelo, continuando a vibrar sem parar.

— Merda!

Senti vontade de bater os pés no chão como uma criança birrenta, mas eu já era uma adolescente de quinze anos e ficava mal para minha imagem ter uma crise infantil agora. Mas vontade não me faltava!

Abrandei os passos e puxei o aparelho só um pouquinho do bolso, o suficiente para ver quem era.

A minha mãe! Tinha que atender.

— Oi, mãe.

— Oi, amor! Já chegou ao colégio?

— Estou quase lá, mas o vento está terrível e fica péssimo atender na rua.

Passei ao lado do pavilhão de desportos, que era o prédio mais isolado do colégio. Só mais um pouco e estaria ultrapassando os portões da frente.

— É rápido — ela continuou e ouvi ao fundo o som de uma ambulância. — Hoje não almoço em casa. Mudaram meu turno na urgência e só chego à noite. Ligue se precisar de alguma coisa.

— Tudo bem, mãe. Fica tranquila. Te amo.

— Também te amo, pequenina. Beijo.

Quando ia guardar o celular no bolso, ouvi o som de um baque no chão e um gemido de dor. Levantei o rosto e olhei em volta, pois tinha certeza de que alguém havia levado uma queda.

Outro som estranho e mais um gemido de dor.

Apertei o celular na mão e olhei para o muro do pavilhão, sabendo instintivamente que tinha vindo de lá. Logo depois, ouvi grunhidos de dor, arrastar de sapatos, papéis rasgados, puxões e empurrões que fizeram o meu coração disparar.

— Paneleiro medroso do caralho!

A voz arrogante veio do espaço entre o muro e o pavilhão. Contudo, naquela parte onde eu estava, o muro era inteiro, sem grades, não me deixando ver quem era.

Eu sabia que a minha mãe teria um ataque de nervos se visse o que eu ia fazer naquele momento, mas retrocedi até onde dava para ver o trecho entre o pavilhão e o muro. Aquele era o lugar que os alunos antigos chamavam de “corredor da morte”.

Olhei nervosamente ao longo da rua e não vi ninguém a quem pudesse pedir ajuda. Normalmente, aquela era uma rua pouco movimentada e, só para confirmar o fato, observei que estava mesmo deserta.

Estimulada pelos sons de luta que continuavam, aproximei-me e enfiei a cabeça o mais que pude na grade e olhei para o canto.

— Oh, meu Deus! — murmurei, enojada.

Três rapazes estavam em pé ao redor de um outro caído ao chão, cujo casaco havia sido arrancado do corpo e jogado em uma poça de água da chuva que caíra na madrugada. A mochila estava aberta, com os livros espalhados. Algumas páginas dos cadernos tinham sido arrancadas e voavam ao sabor daquele vento glacial.

Olhei os agressores, mas não deu para ver quem eram, pois estavam de costas e tinham os capuzes dos casacos levantados. Mas a vítima identifiquei logo como sendo o Miguel, um dos meus colegas. Ele era tímido, calado, magro e inofensivo.

Quando o rapaz do meio, que parecia ser o líder, deu um chute com a ponta da bota nas costelas dele, a revolta subiu pela minha garganta e reagi instintivamente, gritando.

— Parem!

Todos olharam para mim e engoli em seco.

Senhor! O que foi que eu fiz?

Reconheci de imediato os três agressores e soube logo que não iam parar só porque eu estava pedindo.

Droga!

Muito mais por instinto do que conscientemente, comecei a filmar com o celular, focando no rosto dos três agressores, com o Miguel no chão e o caos ao redor. Minhas mãos tremiam, em um misto de medo, adrenalina e muito frio.

A minha mãe ia ficar estressada com aquilo, mas eu não podia simplesmente ignorar tudo e ir chamar alguém, deixando o Miguel sozinho naquela situação. Não dava tempo.

— Vocês estão dentro das instalações do colégio. Se não se afastarem dele agora, este vídeo pode ir parar na diretoria.

Fiquei orgulhosa da firmeza na minha voz, apesar de me sentir desfazer de medo por dentro.

Se fosse no Brasil, provavelmente isso seria um suicídio para mim, mas aqui em Portugal a violência ainda não era tão selvagem e incontrolável como lá. Eu arriscaria salvar o meu amigo, já que o nosso colégio era rigoroso e tradicionalmente recebia alunos de bom nível. Estávamos também em uma cidade pequena e pacata, o que ajudava a manter a criminalidade mínima.

No entanto, eu sabia que nada evitaria que viesse algum tipo de represália para mim depois. Aquela certeza caiu em cheio no meu peito quando os meus olhos bateram direto no olhar duro do líder.

Estremeci involuntariamente.

Mas que merda! Por que tinha de ser logo ele?

Os três ficaram paralisados ao me verem filmando, mas foi apenas o tempo necessário para se refazerem do choque. Logo, dois deles começaram a se afastar em direção ao prédio principal. Contudo, o líder me surpreendeu ao correr para cima de mim com tanta rapidez que mal tive tempo de recuar e ficar longe do seu alcance.

A  mão dele voou através da grade de ferro em busca do meu celular, mas só conseguiu segurar a ponta do cachecol que flutuou no ar com a força do vento. Ele o puxou com tanta força que senti o tecido apertar o meu pescoço, asfixiando-me. Lutei para me soltar, mas ele continuou puxando e me arrastando em sua direção.

E em breve me teria ao alcance da mão!

Levantei a perna e apoiei o pé no muro para impedir o meu avanço. Larguei o celular na grama molhada e segurei o cachecol com as duas mãos. Dei um impulso rápido e girei sobre mim mesma para o desenrolar do pescoço. Quase caí para trás quando consegui, sentindo alguns fios do meu cabelo longo sendo arrancados no processo. 

Os olhos dele brilharam com ódio e a boca se apertou em um esgar de fúria mal contida. Com raiva, jogou o cachecol no chão e apontou o dedo em riste para mim.

— Você ameaçou o cara errado, brasileirinha! — rosnou com agressividade.

Encarou-me com dureza por mais um segundo, fazendo-me recuar e estremecer de medo. Depois se virou e saiu andando calmamente atrás dos colegas, cuspindo no chão quando passou ao lado de Miguel.

Coloquei a mão no pescoço dolorido e respirei, aliviada.

Pelo menos por enquanto estou salva!

Olhei para o meu celular largado sobre a grama molhada. Peguei-o, interrompendo a filmagem com mãos trêmulas. Naquele instante, soube que a minha vida nunca mais seria a mesma. Eu havia trazido o inferno para perto de mim!

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