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O Passado Que Nos Uniu Para Sempre

CAPÍTULO 1

Castello di Marzano — Cesena

Ano de 1376

Angélica Marzano

A minha irmã terminou a trança que fazia nos meus cabelos e prendeu a ponta com uma fita verde da cor do meu vestido. Levantou-se depois da cama e me fez ficar de pé à frente dela, cujo olhar avaliador percorreu o meu corpo por inteiro.

— Você está linda! Todos hoje vão ficar encantados com tamanha formosura.

Abracei-a pela cintura, emocionada com o amor que nos unia.

— Linda é você, Amanda. A melhor irmã e a mais linda de todos os reinos.

Ela soltou uma risada e estreitou o abraço, dando-me um beijo no alto da cabeça.

Na minha visão de jovem donzela de dezesseis primaveras, aquela era uma verdade incontestável. Eu não conhecia nenhuma outra mulher que fosse mais bela do que Amanda. A minha irmã era oito anos mais velha do que eu e sempre cuidou mais de mim do que a nossa própria mãe, que vivia ocupada demais com todos os afazeres de senhora do castelo.

Amanda se casou aos dezoito anos e ficou viúva aos vinte e um. Desde os quinze era a prometida de Bertrando Strozzi, o filho mais velho de um magistrado de Florença muito amigo da nossa família. Apesar de o meu pai e o pai do noivo desejarem um casamento rápido, a minha mãe não permitiu que Amanda se casasse tão jovem. Ela mesma havia se casado aos dezesseis anos e quase morreu ao trazer o meu irmão mais velho ao mundo. Pelo que ouvi das conversas da minha mãe com as damas de companhia, o corpo muito jovem e franzino que tinha na época não estava pronto para gerar um bebê.

A ida de Amanda para Florença doeu muito em mim. Na minha cabeça de menina, ela se casaria e continuaria morando ali mesmo em Marzano. Eu não contava com aquela separação. Amanda foi embora e nunca falei para ninguém a dor que sentia com a ausência dela.

Dois anos após o casamento, Bertrando Strozzi foi para o campo de batalha e passou meses em campanha militar, até ser mortalmente ferido. Amanda cumpriu um período de luto em Florença e depois voltou para Marzano. Os anos que passei longe dela foram os piores da minha vida e tentei não ficar feliz demais quando ela voltou viúva e sem filhos.

Passaram-se três anos desde o retorno de Amanda e eu só esperava que ela permanecesse no castelo para sempre.

Eu amava a minha mãe, mas Amanda era uma combinação perfeita de irmã, mãe e amiga. Mesmo com a diferença de idade que existia entre nós duas, eu sabia que era a única confidente que ela tinha. Não éramos confidentes apenas por sermos as únicas filhas entre os nossos quatro irmãos, mas por existir um amor profundo que nos unia. Era comigo que Amanda confidenciava tudo, como o fato de nunca ter amado o marido imposto pelo nosso pai e do quanto foi difícil o relacionamento com a mãe dele enquanto esteve casada.

— Todos os meses a senhora Adelaide me perguntava se eu já estava com um bebê na barriga. Quando eu dizia que o meu sangramento mensal tinha chegado, ela me olhava com tanta raiva que até agradeci à Nossa Senhora do Monte por não ter gerado um filho do falecido Bertrando. Mesmo viúva, eu seria obrigada a ficar presa naquele castelo por causa do meu filho. — Amanda fez o sinal da cruz em agradecimento à santa. — Bertrando nunca reclamou de nada, mas o mesmo não acontecia com a mãe dele.

— Você nunca comentou com Bertrando sobre como a mãe dele a tratava mal?

— De jeito nenhum! Bertrando venerava a própria mãe, nem eu ia colocar um contra o outro, mesmo com ela me atacando a todo instante. Dona Adelaide nunca falava na frente de ninguém, era sempre só para mim. Vivia repetindo que o filho esperou anos para se casar comigo, porque eu precisava estar com o corpo preparado para dar à luz, e agora que estava casado, não ia ter filhos por minha culpa. Você acredita que ela chegou a dizer que eu não conseguia ter filhos porque me limpava demais? Juro que tentei não mostrar o quanto fiquei horrorizada. — Amanda riu ao se lembrar. — Ela afirmou, muito cheia de razão, que eu deveria tomar menos banho para não tirar a semente de Bertrando do meu corpo.

Arregalei os olhos, tão horrorizada quanto Amanda devia ter se sentido na ocasião.

— Então eles não tomavam muitos banhos?

— Não tanto quanto nós aqui em Marzano — segredou em voz baixa. — Talvez tenha sido por isso que Florença foi uma das cidades que mais sofreu com a peste negra. As pessoas lá não têm os mesmos hábitos de limpeza que nós temos.

— E como ela sabia quantas vezes você tomava banho?

— Acho que a camareira que me atendia contava tudo a ela.

Olhei pensativamente para a minha irmã.

— Então você não pode ter filhos?

O rosto de Amanda ficou tão triste com a minha pergunta que até me arrependi de tê-la feito.

— Acho que não posso. — Sorriu, mas notei que a tristeza continuava nos olhos dela. — Mas também não quero me casar nunca mais!

Durante anos acreditei naquilo e ela também, até o dia em que uma tropa de cavaleiros de Florença chegou ao nosso castelo e Amanda passou a nutrir um amor secreto pelo comandante do grupo de militares.

Eu nunca entendi muito bem o motivo da presença de Paolo Lavorini e seus homens em Marzano, mas sabia que foram enviados pelo conde Bartolomeo Rangoni, um dos amigos florentinos do meu pai. Muitas vezes depois da ceia, o meu pai gostava de narrar as aventuras que viveu nos campos de batalha. Foi em uma dessas ocasiões que contou sobre a antiga amizade com o conde Bartolomeo.

Depois da chegada do imponente cavaleiro florentino, não demorou muito para Amanda confessar que estava enamorada.

— Senti algo diferente dentro de mim assim que vi o comandante Paolo pela primeira vez. Nunca senti nada parecido pelo falecido Bertrando — admitiu certa noite quando estávamos nos preparando para dormir. — Se o nosso pai souber, é capaz de mandar me enclausurar na abadia.

Fiquei assustadíssima com aquela possibilidade.

— A abadessa não aceitaria enclausurar você. Ela é uma mulher tão bondosa! Gosto muito dela.

Amanda sorriu ao acariciar o meu rosto.

— Você tem razão. A abadessa Beatrice é mesmo uma mulher bondosa, mas não é na abadia que eu quero passar o resto dos meus dias.

— Para isso não acontecer, precisamos manter segredo sobre você e o comandante Paolo.

Ela riu ainda mais.

— Não existe isso de “ele e eu”, Angélica. O comandante não sabe dos meus sentimentos, nem deve sentir nada por mim. É um cavaleiro experiente que cumpre suas obrigações sem deixar que nada o distraia. Ele não vai se interessar pela filha viúva do senhor do castelo onde está a servir, ainda mais com esses vestidos pretos e essa touca escura que sou obrigada a usar por causa da viuvez.

— Por que não passa a usar roupas mais coloridas e bonitas como antes?

— Se eu fizer isso, o nosso pai vai encontrar logo outro marido para mim. Estarei salva enquanto ele me vir como uma viúva. Talvez com o tempo eu consiga deixar de gostar do comandante Paolo.

Apesar do que Amanda disse, o tempo passou e os sentimentos dela não mudaram. A minha irmã continuava tão enamorada do cavaleiro florentino quanto antes. Tanto, que se desesperou no dia em que o nosso pai nos procurou na sala de costura para falar sobre um assunto que nenhuma de nós duas queria ouvir: casamento.

Assim que ele entrou na sala, cumprimentou cortesmente as damas de companhia da minha mãe que estavam sentadas ao nosso redor. Elas se ergueram de pronto e fizeram uma respeitosa reverência diante dele.

— Deixem-nos a sós. Preciso conversar com a minha esposa e filhas.

Todas saíram silenciosamente da sala, mas notei os olhares que trocaram entre si, curiosas para saber o motivo que trouxe o senhor de Marzano à sala de costura, algo incomum de acontecer.

— O conde Ricardo Santini acabou de sair de Marzano.

Parei de bordar a gola de um dos meus vestidos ao ouvir aquele nome.

— Eu não sabia que ele vinha a Marzano hoje — comentou a minha mãe ao colocar a costura de lado.

— Nem eu sabia. Fui chamado às pressas por um dos guardas da muralha, que me procurou para avisar que um grupo de cavaleiros com o estandarte dos Santini estava se aproximando a galope de Marzano. Só tive tempo de descer da torre mestra e chegar aos portões da muralha antes de ele entrar.

— O que o senhor de Rimini queria?

— Disse que era uma visita rápida e não ia demorar. Veio apenas para saber se estávamos com tudo pronto para hospedar o cardeal e o seu exército durante o inverno.

A minha mãe contorceu o rosto com desagrado.

— Se ele acha que não vamos acomodar bem o cardeal, devia ele mesmo fazer isso na própria fortaleza.

O meu pai ignorou o azedume com que ela falou.

— Somos mais ricos e prósperos.

— Teremos de ser mesmo, se quisermos alimentar os nossos soldados, o povo de Marzano, a cidade, os camponeses e ainda mais o exército do cardeal durante o inverno inteiro. Quando ele for embora na primavera para continuar a campanha de reconquistar Bolonha e acabar com a rebelião de Florença, estaremos sem um único grão de trigo.

A ruga de preocupação que vincou a testa do meu pai mostrou que ele não estava de ânimo tão leve quanto aparentava com a estadia do cardeal em Marzano.

Sentou-se bruscamente no banco à nossa frente e permaneceu em um silêncio pensativo que nenhuma de nós interrompeu. Continuamos a bordar, acostumadas que estávamos com os momentos de abstração dele. Não era raro vê-lo ensimesmado por causa de algo que o incomodava, mas notei que daquela vez parecia mais nervoso do que o habitual.

Durante algum tempo, a única coisa que se ouviu na sala de costura foi o som áspero do fio de lã sendo puxado pela agulha através do tecido de linho que a minha mãe bordava.

— Recebi um pedido de casamento para você, Amanda.

O comunicado dele feito de rompante nos pegou de surpresa. Amanda quase se espetou com a agulha de tão nervosa que ficou. Da minha parte, o desespero foi igual.

— Um pedido para mim, senhor meu pai? — Ela parou de costurar e pousou sobre o colo o pano de linho onde bordava um lindo padrão de flores. — Fiquei viúva há tão pouco tempo. Eu preferia não voltar a me casar nos próximos anos. Ainda não consegui me recuperar da perda do meu falecido marido, a quem amei muito e de quem sinto demasiada saudade. Se os pais de Bertrando souberem que voltei a me casar, podem considerar um desrespeito à memória do filho. Eles foram testemunhas do grande amor que vivemos.

Eu sabia que Amanda não havia amado o falecido marido, mas concordava que aquela era uma excelente desculpa para impedir que o nosso pai arranjasse com tanta pressa um outro casamento para ela. Eu amava o meu pai, mas também tinha muito receio de que um dia ele olhasse para mim e dissesse que havia chegado a minha vez. Para a minha sorte, até hoje ele me tratava como se eu ainda fosse uma menina de dez anos e não uma jovem donzela de dezesseis.

— Foi exatamente isso o que eu disse ao conde Ricardo, mas ele insiste que pode aguardar.

Amanda soltou um arquejo de espanto ao saber que o pretendente era o conde Ricardo. Ele até podia ser um conde, mas era também um condottiero conhecido pela sua ferocidade. Qualquer mulher decente e sã pensaria duas vezes antes de se tornar esposa de um homem daqueles, ainda mais se estivesse enamorada de outro, como era o caso de Amanda.

— Eu devia ter adivinhado que o conde Ricardo não viria aqui apenas para saber das acomodações do cardeal. — Aborreceu-se a minha mãe, colocando o bordado sobre o colo em um gesto impaciente.

Aquela não era a primeira vez que o conde tentava se casar com Amanda. Antes de ela completar dezoito anos, o pedido foi feito em uma outra visita que fez a Marzano. A fortaleza do conde em Rimini ficava a cerca de três horas de viagem do nosso castelo e ocasionalmente ele nos visitava a caminho de Roma, Florença ou Borgonha. Na ocasião do primeiro pedido de casamento, trouxe com ele o filho mais velho, o também condottiero Saulo Santini. Algo nos dois me deixava inquieta sempre que os via, talvez por saber que comandavam mercenários, que para mim era o mesmo que uma horda de assassinos cruéis.

Nas visitas que pai e filho faziam a Marzano, eu agradecia a Deus quando chegava a hora de as mulheres se retirarem do salão para que os homens pudessem conversar sozinhos.

Quando o conde fez a primeira proposta de casamento para Amanda, teve o pedido negado pelo meu pai, que deu como justificativa o fato de já ter acertado o casamento dela com o primogênito da família Strozzi. Só no dia seguinte ficamos sabendo do ocorrido. Segundo o nosso pai, Bertrando Strozzi era filho de um dos magistrados mais respeitados de Florença, o que significava uma união muito mais vantajosa para a nossa família.

Agora, estávamos mais uma vez sendo surpreendidas com um novo pedido do conde Ricardo. Se o nosso pai aceitasse, Amanda seria obrigada a se casar com um homem que era pouco mais jovem do que o nosso próprio pai.

— Depois que o conde ficou viúvo há oito anos, nunca mais voltou a se casar — explicou o nosso pai, aparentemente sem perceber o quanto estávamos aturdidas com a insistência do conde. — Ele reconheceu a necessidade de respeitarmos um período maior do seu luto, Amanda.

— Mas o senhor negou?

— Deixei o assunto para analisar depois. Como já é a segunda vez que ele pede você em casamento, achei melhor ser mais cuidadoso e não negar de imediato.

— Eu já ia falar com o senhor meu pai e com a senhora minha mãe sobre a vontade que tenho de fazer luto perpétuo pelo falecido Bertrando — Amanda mentiu sem pudor algum.

Ser casada deve ser mesmo muito ruim, se ela está disposta a fazer luto perpétuo e despertar a ira do nosso pai.

Ele franziu o sobrolho, aborrecido, mas quem interveio antes foi a nossa mãe.

— Calma, filha. Não tome essa decisão agora. Você ainda é muito jovem para fazer um voto de luto perpétuo. Pode um dia se enamorar novamente e querer se casar de novo.

— Mas eu não estou enamorada do conde Ricardo. — Amanda quis deixar bem claro que não desistiria do voto de luto perpétuo em favor de um casamento sem amor com o conde.

O meu pai perdeu a paciência.

— Vamos parar com esta discussão! Apesar de o conde Ricardo ser um homem poderoso que traria algumas vantagens para a nossa família com o casamento, é também muito sorrateiro. Não confio totalmente nele. Até agora não tenho certeza de qual é a causa que ele defende.

— Você sabe muito bem que ele defende a causa dos guelfos — lembrou a minha mãe com uma certa ironia. — Ele é um condottiero a serviço do papa e segue as ordens do cardeal Roberto, que vai ficar hospedado aqui durante todo o inverno.  

Notei um toque de desprezo no tom de voz da minha mãe que muito me surpreendeu e olhei logo para Amanda, que fez uma expressão de quem dizia para eu fingir que não havia percebido nada.

— A única coisa que eu sei, é que ele luta por quem pagar mais — resmungou o meu pai. — Hoje está do nosso lado, amanhã pode estar contra nós.

— Não somos muito diferentes dele, senhor meu marido. Já fomos gibelinos, antes de sermos forçados a nos tornarmos guelfos.

Foi difícil manter o rosto impassível daquela vez ao ver a minha mãe tocar em um assunto delicado com tanta coragem. Para disfarçar, peguei a agulha e continuei a bordar como se não tivesse escutado nada.

— Fale baixo, Cosima! Não me espantaria se as suas damas de companhia coscuvilheiras estivessem escutando atrás da porta — alertou o meu pai em um grunhido ríspido. — Se eu descobrir que o conde Ricardo Santini está contra tudo o que defendo, a última coisa que vou dar a ele será a mão da minha filha. Assunto encerrado!

Respirei aliviada e comecei a rezar para que o conde fosse contra tudo o que o meu pai acreditava e defendia. Só assim Amanda se livraria daquele casamento para ser feliz com o homem que amava: o comandante Paolo Lavorini.

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